Por Ana Paula Belinger
Advogada e sócia-fundadora da Belinger Inc.
Um dos debates mais sensíveis do Direito Civil brasileiro voltou ao centro da cena nesta semana: afinal, um imóvel de alto padrão pode ser penhorado para pagamento de dívidas? A resposta da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça foi clara e unânime: não, quando se tratar do único imóvel destinado à moradia da família.
A decisão reafirma o comando da Lei nº 8.009/1990, a conhecida Lei do Bem de Família, e coloca um ponto final nas tentativas de relativizar a impenhorabilidade com base no “valor elevado” ou na “localização privilegiada” do imóvel. A controvérsia nasceu no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
O TJ-RJ havia autorizado a penhora de um apartamento na Barra da Tijuca, um dos metros quadrados mais valorizados do país, sob o argumento de que a lei não pretendia blindar imóveis de alto padrão, mas apenas assegurar que o devedor permanecesse vivendo em condições dignas.
Em uma tentativa de solução intermediária, o tribunal fluminense chegou a determinar que, após a venda judicial, fosse garantida ao devedor uma “reserva de valor” suficiente para adquirir outro imóvel em região menos cara.
Entretanto, o entendimento do Superior Tribunal de justiça é que o preço não define dignidade.
Ao analisar o recurso, o ministro Moura Ribeiro foi categórico: a legislação não estabelece qualquer diferenciação entre imóveis de luxo e imóveis modestos. E se o legislador não criou esse filtro, não cabe ao Judiciário fazê-lo.
Em seu voto, o ministro lembrou que, se esse tivesse sido o objetivo, o texto legal teria previsto critérios de valor, localização ou suntuosidade, o que jamais ocorreu.
Criar essa distinção agora, pela via da interpretação, seria abrir caminho para um terreno perigoso: “introduzir um critério subjetivo e gerador de insegurança jurídica, contrário ao espírito da lei”, afirmou.
A lei não protege o luxo — protege a casa como bem de família como um dos elementos que compõe a dignidade humana. A essência da Lei do Bem de Família é simples: impedir que o devedor seja privado de sua moradia. Não importa se o imóvel é pequeno, grande, simples ou sofisticado. O que importa é sua função social: resguardar a dignidade da família.
Por isso, a solução do TJ-RJ autorizar a penhora, mas reservar valor para compra de outro imóvel, também foi afastada. Na avaliação do STJ, essa engenharia criativa afrontou o próprio texto da lei e colidiu com jurisprudência já consolidada na Corte.
A decisão do STJ é um recado claro ao sistema judicial: não cabe reescrever a Lei do Bem de Família com base em percepções subjetivas sobre padrão de vida ou valor de mercado.
E reforça algo que sempre defendemos na prática da advocacia preventiva: a segurança jurídica depende de previsibilidade, não de interpretações elásticas que variam conforme o caso concreto.
Para credores, a decisão é um lembrete importante de que a execução patrimonial possui limites constitucionais e legais. Para devedores, é a reafirmação de um direito essencial: a moradia como núcleo mínimo da dignidade.
No final, a lição é simples e poderosa: a moradia não muda de natureza porque tem vista para o mar.






